12 de janeiro de 2013

Off-topic: José Castello: O desmaio de Proust (O Globo, 12 de janeiro de 2013)


Sei que a postagem foge um pouco (talvez muito) da proposta do blog, mas, em certa medida, vem a iluminar um pouco o que se tem pensado e dito hoje sobre a literatura contemporânea, sem deixar de fazer referência a uma referência incontornável francesa: Marcel Proust.
Além do mais, é uma coluna sobre o meu recém-lançado livro Teu pai com uma pistola. E eu não poderia deixar de colocar aqui este texto tão generoso:



O desmaio de Proust
            José Castello, no caderno Prosa&Verso d’O Globo de 12 de janeiro de 2013

Surpreso, encontro em “Teu pai com uma pistola” (Confraria do Vento), inspirada reunião de poemas de Thiago Mattos, um poema – batizado apenas “2,1”, nomeado, como todos os outros, só com uma ordem crescente de decimais – que concentra, em uma página e meia, grande parte dos dilemas da literatura contemporânea. Por isso nele me detenho: porque, como um brevíssimo raio em meio À noite escura, ele descerra uma breve, mas atordoante, luz. Ela ilumina impasses que me atormentam e agitam, mas que quase nunca consigo acessar.
            O livro de Thiago, de fato, me envolve. Oferece-me pistas em um caminho, na maior parte do tempo, desprovido de pegadas. “Que bom que você ainda se surpreende com livros”, me diz uma amiga querida. Seu comentário, sem que ela saiba disso, sintetiza o problema que venho propor a meus leitores. Serei eu que, talvez em uma fase hipersensível, ou em um “mau momento”, me deixo golpear pelo poema, sentindo um raspar delicado como um soco? Ou, ao contrário, e de fato, é o poema (é o livro) que me esmurra, sacudindo-me, arrancando-me de meu eixo, e me levando a uma espécie de desmaio?
            O poema em questão, “2,1”, trata justamente da lenda que cerca um desmaio súbito de Marcel Proust quando, aos 31 anos de idade, visitando o Museu Mauritshuis, em Haia, ele se deparou com “A vista de Delft”, uma das telas mais conhecidas do pintor barroco Johannes Vermeer. O pintor holandês terminou de pintá-la no ano de 1660; Proust a viu, pela primeira vez, no ano de 1902. A tela retrata a pequena cidade holandesa de Delft, situado a meio caminho entre Haia e Roterdã, em que Vermeer nasceu e na qual ele está enterrado. É uma visão magnífica das silhuetas em pedra da pequena vila – fundada em 1062 e ponto de origem da atual Holanda. Sobre as construções grandiosas e o canal que elas bordejam, nuvens cinzentas acentuam o ar dramático. É, de fato, um quadro que nos atinge e desorganiza.
            Pois foi diante dessa tela de Vermeer que Marcel Proust, conta a lenda, teria subitamente desmaiado. É a respeito desse desmaio, e das questões complexas que ele nos apresenta, que Thiago Mattos escreve. O poeta se imagina em uma entrevista, na qual se refere ao dia em que “Proust/desmaiou/vendo o quadro (um quadro de alguém)”. A hipotética síncope deixa o poeta Thiago em uma encruzilhada. Escreve: “Ele era doente”, eu diria/”ele era fisicamente doente,/desmaiou porque teve talvez/uma emoção forte/e como era frágil...”
            Nesta primeira hipótese, a força não estaria na tela de Vermeer, mas na fraqueza emocional de Marcel Proust. Hipersensível, desprotegido, com o coração sempre exposto, o autor de “Em busca do tempo perdido não teria resistido à beleza” – sim, beleza indiscutível – de uma tela que, contudo, talvez não fosse bela o suficiente para justificar o desmaio. “Mas não desmaiou por causa do quadro/a arte ainda não tem/ou não tem mais/o poder de/fazer as pessoas desmaiarem”. Atentem: “ainda não tem”. Gosto disso, abre uma esperança.
            Tem sim, Thiago. Não, não cheguei a desmaiar lendo seu poema, não cheguei a tanto. Você não deve se preocupar comigo. Amigos, muitas vezes, também me dizem que sou hipersensível, que me impressiono exageradamente, que altero e amplio o poder das coisas. Talvez, não estou certo. Mas admito: talvez. O fato, porém, é que não desmaiei e, no entanto, seu poema, Thiago, me golpeou com a força de um boxeador. Ou, talvez, como o tiro de uma arma, a mesma pistola que carrega o pai de seu livro.
            Não é por acaso que penso no boxeador: você pensou nele antes de mim. Você escreve: “pensei numa/máquina/que era uma luva de boxe com um braço mecânico retraído que se expandia e dava um soco/no espectador/quando ele chegava perto/e o espectador desmaiava”. Você sim, Thiago, pensa na arte – ainda hoje, mesmo em nosso século apressado e incapaz da contemplação – como um soco desferido por um boxeador. Mecânico, certo. Só uma máquina – mas hoje tudo é máquina. Ainda assim, boxeador. Ainda assim: algo que nos derruba.
            O problema que seu belo poema expõe é: será a arte, ainda hoje, se é que já foi algum dia, capaz de nos golpear e arruinar? Será ela capaz de nos “possuir” – como um espírito que, uma vez chamado, se incorpora em um médium e o inclina? Você, Thiago, termina seu poema com uma ironia bem contemporânea: “...desmaiava/ou/se fosse inteligente/pelo menos/fingia desmaiar”. Mas que uso louco da inteligência! Colocá-la a serviço da mentira, de que isso realmente nos serve? No entanto, em nosso século das grifes e das performances e dos desempenhos e dos índices... Bem: você sabe. E nos diz isso.
            É todo belo – delicado e sutil, mas indiscutivelmente belo – o livro de Thiago Mattos. Transpassa-o, sempre, a mesma pergunta: será a arte “só isso”, isto é, “emoção estética”? Ou ela será “mais que isso”, quer dizer, será a arte (a poesia) algo que ainda hoje pode afetar, desarticular e deslocar? Homens (o mundo hoje está cheio deles) se armam com pistolas, não com quadro, não com poemas. Mas por que não armar-se com a máquina que Thiago imaginou? Por que não “armar-se” – mas o verbo não é bem esse, não pode ser esse – com o soco da poesia? Por que não se alimentar (esse verbo é melhor) devorando (ou sendo devorado) por uma tela?
            Arte (poesia) que é, sempre, enigma. Uma estrela no outro extremo da galáxia: inalcançável. Como nos propõe Thiago no poema “0,9”: “oh, o sol posto/olhe o sol posto/como está posto não dá para vê-lo/por isso olhe o sol posto”. Eis a arte: ela nos propõe que vejamos o invisível. Não vamos conseguir (desmaiamos antes, como Marcel Proust). Mas esse desmaio – esse deslocamento, esse soco – é a visão que a arte nos oferece Podemos observar os eclipses solares usando como anteparos folhas de raios X, filtros especiais, películas de cinema. Para a poesia, contudo, não existe proteção: ou você expõe a vista e aceita ser derrubado – ser “lido” pelo poema – ou não chegará a ler um poema. Experimentem fazer isso com o livro de Thiago Mattos. Experimentem enfrentá-lo. Pode até ser que não desmaiem, mas ficarão surpresos.


José Castello,
no caderno Prosa&Verso d’O Globo de 12 de janeiro de 2013

2 comentários:

Anônimo disse...

En fait, cela me rappelle l '«Origine de l'œuvre d'art», Heidegger, c'est bien. Mattos contribue à saper l'hypocrisie du «look paysan de la chaussure.

Antoine Doinel

Anônimo disse...

En fait, cela me rappelle l '«Origine de l'œuvre d'art», Heidegger, c'est bien. Mattos contribue à saper l'hypocrisie du «look paysan de la chaussure.


Antoine Doinel