10 de outubro de 2014

Patrick Modiano: Rua das Lojas Obscuras [Rue des Boutiques Obscures] - trecho

Patrick Modiano é o 15º autor francês a receber o prêmio Nobel de literatura. Nascido em 1945, já publicou cerca de 30 romances, a maioria deles transitando entre o ficcional e o biográfico, entre a história e a memória, concentrando-se essencialmente no período da II Guerra. O trecho a seguir faz parte do livro Rue des Boutiques Obscures [Rua das Lojas Obscuras], com o qual recebeu o prêmio Goncourt de 1978. Pouquíssimo traduzido no Brasil, espera-se que, como é de praxe com autores que recebem o Nobel, Modiano seja intensamente publicado nos próximos anos.



Na ilha, seguimos por um caminho coberto de grama e rodeado de coqueiros e jaqueiras. De tempos em tempos, um muro branco baixo marcava o limite de um jardim no meio do qual se erguia uma casa – sempre a mesma – com um alpendre e um telhado de zinco pintado de verde.
Desembocamos em um grande campo cercado de arame farpado. Do lado esquerdo havia vários hangares, e, entre eles, um edifício com três andares, de um bege rosado. Fribourg me explicou que se tratava de um antigo aeródromo construído pelos americanos durante a guerra do Pacífico e que era onde Freddie vivia.
Entramos no edifício de três andares. No térreo, um quarto mobiliado com uma cama, um mosquiteiro, uma escrivaninha e uma poltrona de vime. Uma porta dava acesso a um banheiro rudimentar.
No segundo e terceiro andares, os cômodos estavam vazios e azulejos marcavam as janelas. Um pouco de entulho no meio dos corredores. Em uma das paredes, haviam pendurado um mapa militar do Pacífico Sul.
Voltamos para o quarto que devia ser o de Freddie. Pássaros de plumagem castanha entravam pela janela entreaberta e pousavam, em fila, sobre a cama, escrivaninha e estante de livros, perto da porta. Eram cada vez mais. Fribourg me disse que eram melros e que comiam tudo, papel, madeira, até as paredes das casas.
Um homem entrou no cômodo. Usava um pareo colorido e tinha uma barba branca. Falou com Maori, um gordo que seguia Fribourg como se fosse sua sombra, e Maori traduzia, se balançando levemente. Há quinze dias, a escuna com que Freddie queria ir até as ilhas Marquise havia se chocado contra os recifes da ilha, e Freddie não estava mais a bordo.
 Ele nos perguntou se queríamos ver o barco e nos levou até a laguna. A escuna estava lá, o mastro quebrado, e sobre as laterais da embarcação, para protegê-las, haviam amarrado pneus velhos de caminhão.
Fribourg disse que, assim que voltássemos, pediríamos que fizessem buscas. O gordo Maori, de camisa azul pálido, falava com uma voz muito aguda. Parecia que dava pequenos gritos. Não demorou para que eu não prestasse mais a menor atenção.
Não sei quanto tempo fiquei na beira dessa lagura. Pensava em Freddie. Não, ele com certeza não havia morrido no mar. Talvez ele tenha decidido romper as últimas amarras e se esconder em um atol. Eu acabaria o encontrando. Mas eu precisava tentar ainda uma última atitude: ir para meu antigo endereço, em Roma, na rua das Lojas Obscuras, 2.
A noite chegou. A laguna se apagava pouco a pouco, à medida que sua cor verde se fundia. Na água corriam ainda sombras de um cinza azulado, em uma onda fosforescente.
Tirei do bolso, maquinalmente, as fotos que queria mostrar a Freddie, e, dentre elas, a foto de Gay Orlow, ainda menina. Não havia reparado, até então, que ela chorava. Dava para perceber pelas sobrancelhas franzidas. Por um instante, meus pensamentos me levaram para longe dessa laguna, do outro lado do mundo, em uma estação balneária da Rússia do sul, onde a foto havia sido tirada, há tanto tempo.
Uma menina volta da praia, sob o crepúsculo, com a mãe. Chora por nada, porque queria ter continuado a brincar. Ela se afasta. Dobrou a esquina, e nossas vidas não se dissipam tão rapidamente na noite quanto essa tristeza de criança?



MODIANO, Patrick. Rue des Boutiques Obscures [Rua das Lojas Obscuras]. Paris : Gallimard, 1986, p. 249-251.

Sur l’île, nos suivîmes une allée couverte de gazon et bordée de cocotiers et d’arbres à pain. De temps en temps, un mur blanc à hauteur d’appui marquait la limite d’un jardin au milieu duquel se dressait une maison — toujours la même — avec une véranda et un toit de tôle peint en vert.
Nous débouchâmes sur une grande prairie entourée de barbelés. Du côté gauche, un groupe de hangars la bordaient parmi lesquels un bâtiment à deux étages, d’un beige rosé. Fribourg m’expliqua qu’il s’agissait d’un ancien aérodrome construit par les Américains pendant la guerre du Pacifique et que c’était là que vivait Freddie.
Nous entrâmes dans le bâtiment à deux étages. Au rez-de-chaussée, une chambre meublée d’un lit, d’une moustiquaire, d’un bureau et d’un fauteuil d’osier. Une porte donnait accès à une salle de bains rudimentaire.
Au premier et au deuxième étage, les pièces étaient vides et des carreaux marquaient aux fenêtres. Quelques gravats au milieu des couloirs. On avait laissé pendre, à l’un des murs, une carte militaire du Pacifique Sud.
Nous sommes revenus dans la chambre qui devait être celle de Freddie. Des oiseaux au plumage brun se glissaient par la fenêtre entrouverte et se posaient, en rangs serrés, sur le lit, sur le bureau et l’étagère de livres, près de la porte. Il en venait de plus en plus. Fribourg me dit que c’étaient des merles des Moluques et qu’ils rongeaient tout, le papier, le bois, les murs même des maisons.
Un homme est entré dans la pièce. Il portait un paréo et une barbe blanche. Il a parlé au gros Maori qui suivait Fribourg comme son ombre et le gros traduisait en se dandinant légèrement. Il y avait une quinzaine de jours, le schooner sur lequel Freddie voulait faire un tour jusqu’aux Marquises était revenu s’échouer contre les récifs de corail de l’île, et Freddie n’était plus à bord.
Il nous a demandé si nous voulions voir le bateau et nous a emmenés au bord du lagon. Le bateau était là, le mât brisé, et sur ses flancs, pour les protéger, on avait accroché de vieux pneus de camion.
Fribourg a déclaré que, dès notre retour, nous demanderions qu’on fît des recherches. Le gros Maori au corsage bleu pâle parlait avec l’autre d’une voix très aiguë. On aurait cru qu’il poussait de petits cris. Bientôt, je ne leur prêtai plus la moindre attention.
Je ne sais pas combien de temps je suis resté au bord de ce lagon. Je pensais à Freddie. Non, il n’avait certainement pas disparu en mer. Il avait décidé, sans doute, de couper les dernières amarres et devait se cacher dans un atoll. Je finirais bien par le trouver. Et puis, il me fallait tenter une dernière démarche : me rendre à mon ancienne adresse à Rome, rue des Boutiques Obscures, 2.
Le soir est tombé. Le lagon s’éteignait peu à peu à mesure que sa couleur verte se résorbait. Sur l’eau couraient encore des ombres gris mauve, en une vague phosphorescence.
J’ai sorti de ma poche, machinalement, les photos de nous que je voulais montrer à Freddie, et parmi celles-ci, la photo de Gay Orlow, petite fille. Je n’avais pas remarqué jusque –là qu’elle pleurait. On le devinait à un froncement de ses sourcils. Un instant, mes pensées m’ont emporté loin de ce lagon, à l’autre bout du monde, dans une station balnéaire de la Russie du Sud où la photo avait été prise, il y a longtemps. Une petite fille rentre de la plage, au crépuscule, avec sa mère. Elle pleure pour rien, parce qu’elle aurait voulu continuer de jouer. Elle s’éloigne. Elle a tourné le coin de la rue, et nos vies ne sont-elles pas aussi rapides à se dissiper dans le soir que ce chagrin d’enfant ?

21 de setembro de 2014

Charles Pennequin: c'est mort [está morto]

Charles Pennequin nasceu em 1965, em Cambrai. Poeta multimídia, trabalha também com desenho, video-arte, leitura-performance etc. O texto a seguir faz parte de Pamphlet contre la mort, publicação que lhe rendeu o Prix du Zorba. É possível acompanhar a leitura feita pelo próprio Pennequin no link abaixo. 




está morto
Tradução: Thiago Mattos 

está morto aqui. ou quase. está semimorto. não dá mais. fora daqui era menos morto. mas aqui, se você quiser sair à noite, é morto. tem que ficar em casa. mas mesmo em casa é morto. a TV é morta. é na TV que você sai. você quer passar uma noite boa. mas é a TV que quer passar uma noite boa. então ela diz está morto aqui. ela passa a noite em outro lugar. não se sabe onde. alguns sabem onde a TV passa a noite. vejo pessoas saindo. elas falam que saem mas é só pelo esforço. para dizer que saíram. aí depois elas voltam. tem uns que estão mortos, de ficar indo e vindo para nada. os especialistas vão te dizer : não saia, principalmente se está tudo morto em tudo. nada de ir e vir pra nada. fica em casa. mesmo que esteja morto. falam todos os especialistas na TV.



c’est mort
PENNEQUIN, Charles. Pamphlet contre la mort. Paris: POL, 2012, p. 98.


c’est mort ici. ou presque. c’est quasi mort. on n’en a plus pour longtemps. ailleurs c’était moins mort. mais ici, si vous voulez sortir le soir, c’est mort. faut rester chez soi. mais même chez soi c’est mort. la télé est morte. vous sortez dans la télé. vous voulez passer une bonne soirée. mais c’est la télé qui veut passer une bonne soirée. du coup elle dit c’est mort ici. elle passe la soirée ailleurs. on sait pas où. certains savent où elle passe ses soirées la télé. je vois des gens sortir. Ils disent qu’ils sortent mais c’est pour faire un effort. pour dire d’être sortis. puis après ils re-rentrent. y en a comme ça qui sont morts, de faire tant d’allées et venues pour rien. les experts vous le diront : ne sortez pas, surtout si c’est mort tout partout. pas d’allées et venues inutiles. restez chez vous. même si c’est mort. ils le disent tous les experts à la télé.

Christophe Tarkos: Le petit bidon [O galãozinho]

O texto a seguir faz parte de uma sequência de gravações feitas por Tarkos e disponibilizadas recentemente no Youtube (veja o vídeo a seguir). Dei a quebra dos versos conforme a pausa que Tarkos fazia na leitura, mas o mais provável é que, à maneira da maioria dos textos de Tarkos, seja uma prosa corrida.



O galãozinho
Tradução: Thiago Mattos

Tem um pequeno galão
um galão de óleo sobre a mesa
um pequeno galão vazio
um pequeno galão normal
normalmente sobre a mesa
com o vazio dentro
está fechado mas está vazio
se olhamos dentro do galão
tem o vazio
não tem nada
olhamos sobre a mesa
e vemos um pequeno galão
que não transborda da mesa
o galão continua bem no seu lugar
não se mexe
não transborda como uma massa grande branca vindo por cima da mesa transbordando a mesa se enfiando debaixo da mesa
ele continua em cima da mesa
está totalmente vazio
não acontece nada
além de ter um galão sobre a mesa
mas dentro do galão
acontece muita coisa dentro do galão
tem ar
ar no vazio do galão de metal fechado
é um pequeno galão
não é grande
não tem muito tamanho
é um pequeno galão de óleo
que está sobre a mesa
que está parado sobre a mesa
e que está vazio e que está fechado
e dentro
dentro tem ar
e no ar
em compensação
acontece muita coisa no ar
ele se mexe
o ar se mexe dentro do galão
porque é atraído
o ar
pelo calor
é atraído pela superfície do galão
tem um pequeno galão que está sozinho
que está parado sobre a mesa
que está tranquilo e que não transborda
mas dentro do galão
tem ar que transborda
que se mexe
que cria fluxos
que cria subidas
descidas
e turbilhões
o ar não para de girar dentro do galão
acontece muita coisa dentro do pequeno galão que está sobre a mesa e que não se mexe
acontecimentos e movimentos do ar que se mexe
e que vai se chocar contra a parte de cima do galão se é a parte de cima do galão que está mais quente e se é a parte debaixo do galão que está mais fria
então o ar vai se chocar contra a parte de cima do galão
e se chocando vai saltar e fazer um turbilhão
o turbilhão vai descer
e tem ainda outro turbilhão que vai subir
quando o turbilhão descer
tem muito ar
tem ar
é normal que tenha ar dentro de um galão que está fechado
tem ar se mexendo
tem movimento
tem rajadas de ar que se mexem e que saltam
que se batem
se batem sem parar dentro do galão
e quando se olha o galão de fora
dá para ver sobre a mesa
dá para ver exatamente um galão de metal
bem fechado
bem simples
um pequeno galão simples que não transborda
que continua no seu próprio lugar e que não se mexe
e que não tem nada
é só um pequeno galão de metal
é só metal fechado com uma rolha
é um pequeno galão com uma rolha
está bem fechado
não se mexe
é gentil
é estável
continua onde está
quando olhamos sobre a mesa
não tem nada além de um pequeno galão
olhamos sobre a mesa
olhamos debaixo da mesa
não tem nada além de um galão parado sobre a mesa
não é uma massa grande branca que transbordou que está em tudo tudo tudo por sobre a mesa sobre a mesa em volta da mesa
em volta do galão que come o galão
ninguém come o galão
ele está sozinho
ele está parado
ele está estável
ele não serve de comida
ele resiste
ele suporta
ele tem firmeza
ele resiste bem
ele resiste a tudo
ele não se mexe
ele não se mexeu
ele não vai se mexer
é um pequeno galão
é um pequeno galão parado sobre a mesa
a gente tem sorte de ter um pequeno galão parado sobre a mesa
obrigado galãozinho
obrigado galãozinho



Le petit bidon

On a un petit bidon
un bidon d’huile sur la table
un petit bidon vide
un petit bidon normal
normalement sur la table
avec du vide dedans
il est fermé mais il est vide
si on regarde dedans le petit bidon
on a du vide
on n’a rien
on regarde sur la table
et on voit un petit bidon
qui ne déborde pas de la table
le petit bidon reste bien à sa place
il ne bouge pas
il ne déborde pas comme une grande masse blanche qui viendrait pas dessus la table qui viendrait déborder la table qui viendrait se mettre dessous la table
il reste au-dessus de la table
il est totalement vide
il ne se passe rien
qu’un petit bidon sur la table
mais dedans le petit bidon
il se passe beaucoup de choses dedans le petit bidon
on a de l’air
de l’air dans le vide du petit bidon de métal fermé
c’est un petit bidon
il n’est pas grand
il n’a pas beaucoup de taille
il est un petit bidon d’huile
qui est sur la table
qui est posé sur la table
et qui est vide et qui est fermé
et dedans
dedans il y a de l’air
et dans l’air
par contre
il se passe beaucoup de choses dans l’air
il bouge
l’air bouge dedans le petit bidon
c’est qu’il y est attiré
l’air
par la chaleur
il y est attiré par la surface du petit bidon
on a un petit bidon qui est seul
qui est posé sur la table
qui est tranquille et qui ne déborde pas
mais dedans le petit bidon
il y a de l’air qui déborde
qui bouge
qui fait des effluves
qui fait des montées
des descentes
et des tourbillons
l’air n’arrête pas de tourbilloner dedans le petit bidon
il se passe beaucoup de choses dedans le petit bidon qui est posé sur la table et qui ne bouge pas
il y a des événements de mouvement de l’air qui bouge
et qui va taper contre le haut du bidon se est le haut du bidon qui est le plus chaud et si c’est le bas du bidon qui est le plus froid
alors l’air va taper contre le haut du bidon
et en tapant va rebondir et va faire un tourbillon
le tourbillon va redescendre
et il y a encore un autre tourbillon qui va remonter de dessous
une fois que le tourbillon va descendre
il y a beaucoup d’air
il y a de l’air
c’est normal qu’il y ait de l’air dedans le bidon qui est fermé
il y a de l’air qui bouge
il y a des mouvements
il y a des bouffées d’air qui bougent et qui rebondissent
qui se cognent
se cognent beaucoup dedans le bidon
et quand on regarde le bidon de l’extérieur
comme ça on voit sur la table
on voit juste un petit bidon en métal
tout fermé
tout simple
un petit bidon simple qui ne déborde pas
qui reste à sa place et qui ne bouge pas
et qui n’a rien pour lui
il est juste un petit bidon en métal
c’est juste du métal qui est fermé avec un bouchon
c’est un petit bidon avec un bouchon
il est bien fermé
il ne bouge pas
il est gentille
il est stable
il reste là où il est
quand on regarde sur la table
il n’y a absoluement rien d’autre qu’un petit bidon
on regarde sur la table
on regarde en dessous de la table
il n’y a rien d’autre  qu’un petit bidon posé sur la table
ça n’est pas une grosse masse blanche qui a débordé qui est partout partout partout sur la table dessus la table autour de la table
autour du bidon qui mange le bidon
il ne se fait pas manger le bidon
il est tout seul
il est posé
il est stable
il ne se fait pas manger
il résiste
il tient
il a de la tenue
il résiste bien
il résiste à tout
il ne bouge pas
il n’a pas bougé
il ne va pas bouger
c’est un petit bidon
c’est un petit bidon qui est posé sur la table
on a de la chance d’avoir un petit bidon posé sur la table
merci le petit bidon
merci le petit bidon


24 de janeiro de 2014

Samuel Beckett: seleção de poemas

Samuel Beckett nasceu em Dublin, mas escreveu a maior parte da sua obra em Paris, cidade em que viveu e morreu. Mais conhecido como autor de teatro, Beckett também escreveu romances importantes (Molloy, Malone meurt etc.) e, fato pouco conhecido, poemas. Trazemos abaixo uma breve seleção desses textos. Escritos originalmente em inglês, foram traduzidos em francês pelo próprio Beckett – procedimento comum em sua obra, que é atravessada por esse gesto duplo de escrita em uma língua (seja no francês, seja no inglês) e tradução, pelo próprio autor, para a outra língua (francês ou inglês).  



[sem título]
Tradução: Thiago Mattos

Elas vêm
outras e iguais
com cada um é outro e igual
com cada uma a ausência de amor é outra
com cada uma a ausência de amor é igual



[sans titre]
In: Les Temps modernes, n° 14, novembre 1946

Elles viennent
autres et pareilles
avec chacun c’est autre et c’est pareil
avec chacune l’absence d’amour est autre
avec chacune l’absence d’amour est pareille



A mosca
Tradução: Thiago Mattos

entre a cena e eu
o vidro
vazio exceto por ela

apressada
cerrada em suas tripas negras
antenas ensandecidas asas unidas
patas curvas boca sugando o vazio
abrindo o azul do vidro se esmagando no invisível
sob meu polegar impotente ela faz afundar
o mar e o céu sereno



La mouche
In: In: Les Temps modernes, n° 14, novembre 1946

entre la scène et moi
la vitre
vide sauf elle

ventre à terre
sanglée dans ses boyaux noirs
antennes affolées ailes liées
pattes crochues bouche suçant à vide
sabrant l’azur s’écrasant contre l’invisible
sous mon pouce impuissant elle fait chavirer
la mer et le ciel serein



[sem título]
Tradução: Thiago Mattos

música da indiferença
coração tempo ar fogo areia
do silêncio desabamento de amores
cobre seus olhos e que
eu não mais me ouça
me calar



[sans titre]
In: Les Temps modernes, n° 14, novembre 1946

musique de l’indifférence
cœur temps air feu sable
du silence éboulement d’amours
couvre leurs voix et que
je ne m’entende plus
me taire

    

Dieppe
Tradução: Thiago Mattos

ainda o último refluxo
o seixo morto
a meia-volta e depois os passos
em direção às velhas luzes



Dieppe
In: Les Temps modernes, n° 14, novembre 1946

encore le dernier reflux
le galet mort
le demi-tour puis les pas
vers les vieilles lumières



[sem título]
Tradução: Thiago Mattos

o que faria eu sem esse mundo sem rosto sem questões
onde ser dura apenas um instante onde cada instante
deságua no vazio no esquecimento de ter sido
sem essa onda em que no final
corpo e sombra juntos se engolem
o que faria eu sem esse silêncio abismo dos murmúrios
bufando furioso rumo ao socorro rumo ao amor
sem esse céu que se eleva
sobre a poeira dos seus lastros

o que faria eu eu faria como ontem como hoje
vendo pelo meu postigo se não estou sozinho
errando e girando longe de qualquer vida
em um espaço fantoche
sem voz entre as vozes
encarceradas comigo



[sans titre]
In: Poèmes suivi de mirlitonnades, éditions de Minuit, 1978

que ferais-je sans ce monde sans visage sans questions
où être ne dure qu’un instant où chaque instant
verse dans le vide dans l’oubli d’avoir été
sans cette onde où à la fin
corps et ombre ensemble s’engloutissent
que ferais-je sans ce silence gouffre des murmures
haletant furieux vers le secours vers l’amour
sans ce ciel qui s’élève
sur la poussière de ses lests

que ferais-je je ferais comme hier comme aujourd’hui
regardant par mon hublot si je ne suis pas seul
à errer et à virer loin de toute vie
dans un espace pantin
sans voix parmi les voix

enfermées avec moi

23 de janeiro de 2014

Off-topic: Trecho do discurso de T. S. Elliot ao receber o Nobel de Literatura em 1948

"[...] A poesia é geralmente considerada como a mais local das artes. A pintura, a escultura, a arquitetura, a música podem encantar todos os espectadores e ouvintes. Mas a linguagem, em particular a linguagem da poesia, é absolutamente distinta. Parece até que a poesia, ao invés de unir os povos, os separa.
Mas é preciso lembrar também que se a linguagem levanta barreiras entre os povos, a poesia nos fornece uma razão para tentar derrubar tais barreiras. Gostar da poesia de outra língua é querer compreender o povo a que pertence essa linguagem - compreensão que não pode ser adquirida de outra forma. Pensemos também na história da poesia na Europa e na extraordinária influência que uma língua pode exercer sobre outra. É preciso ter em mente a imensa dívida de cada grande poeta com os poetas de outras línguas. Não esqueçamos que poesia de cada país e de cada língua definharia e desapareceria se não fosse alimentada pela poesia de língua estrangeira. Quando um poeta se dirige a seus compatriotas, transmite também a voz de todos os poetas de outras línguas que o marcaram. E fala ao mesmo tempo aos jovens poetas estrangeiros, que transmitirão a seu povo algo da visão de mundo e do espírito daquele povo. Em parte graças à sua influência sobre outros poetas, em parte graças à tradução, que deve ser compreendida como uma recriação de poemas por poetas, em parte graças aos leitores que não são eles próprios poetas, mas dividem a mesma língua, o poeta pode desempenhar um papel fundamental na compreensão entre os povos."

In: Tous les discours de réception des prix Nobel de Littérature, Flammarion, 2013.

20 de janeiro de 2014

Off-topic: Cortázar naturaliza-se francês

Cortázar naturaliza-se francês:

Moro na França há 30 anos. E minha situação de estrangeiro me obrigou, como é normal, a ficar à margem das questões políticas do país. Pude escrever aqui uma grande parte da minha obra e participar de várias maneiras da luta que tantos latino-americanos empreenderam pela liberdade dos nossos países oprimidos por ditaduras. Mas, ao mesmo tempo, tive que me manter em total silêncio quanto às minhas opiniões sobre os problemas franceses. E se isso é possível desde o início, quando somos realmente estrangeiros no país, torna-se penoso e humilhante, quando vivemos 3 décadas na França e sentimos a necessidade e o direito de manifestar abertamente o que aceitamos e o que recusamos.  

17 de janeiro de 2014

Antonin Artaud: La recherche de la fécalité [A procura da fecalidade]

La recherche de la fécalité  faz parte de Pour en finir avec le jugement de dieu, publicado pela editora K em 1948. O contrato foi assinado com a editora em 12 de fevereiro de 1948, poucos dias após a proibição da emissão do poema no rádio. Junto a esse post, segue o áudio em que Artaud lê o poema, com cortes e alterações que o próprio autor recomendou para a difusão sonora.



A busca da fecalidade
Tradução: Thiago Mattos

Onde cheira a merda
cheira a ser.
O homem poderia muito bem não cagar,
não abrir a bolsa anal,
mas escolheu cagar
como teria escolhido viver
em vez de aceitar viver morto.

É que para não fazer cocô,
teria que aceitar
não ser,
mas não pôde decidir perder
            o ser,
isto é, morrer vivendo.

Tem no ser
alguma coisa particularmente tentadora para o homem
e essa alguma coisa é justamente

                        O COCÔ.
                  (Aqui, rugidos.)

Para existir basta se abandonar ao ser,
mas para viver,
tem que ser alguém,
para ser alguém,
tem que ter um OSSO,
não ter medo de mostrar o osso,
e nem ter medo de perder a carne.

O homem sempre gostou mais da carne
do que da terra dos ossos.
É que só tinha a terra e o osso,
e ele teve que ganhar a carne,
só tinha o ferro e o fogo
e nada de merda,
e o homem teve medo de perder a merda
ou na verdade ele desejou a merda
e, para isso, sacrificou o sangue.

Para ter merda,
isto é, carne,
lá onde só tinha sangue
e ferro-velho de ossos
e onde não tinha o que ganhar
mas só o que perder, a vida.

o roche modo
to edire
diz a
tau dari
do padera coco

Aí o homem se retirou e fugiu.

Então os bichos o comeram.

Não foi um estupro,
ele se prestou à obscena refeição.

Encontrou aí um gosto,
aprendeu ele mesmo
a ser bicho
e a comer o rato
delicadamente.

E de onde vem essa imunda abjeção?

Do homem não ter ainda se constituído,
ou do homem só ter uma pequena ideia do mundo
e querer eternamente guardá-la?

Isso vem do fato de que o homem,
um belo dia,
parou
               a ideia do mundo.

Dois caminhos se ofereciam:
o do infinito de fora;
o do ínfimo de dentro.

E ele escolheu o ínfimo de dentro.
Aí onde só se pode espremer
o rato,
a língua,
o ânus
ou a glande.

E deus, o próprio deus, espremeu o movimento.

Deus é um ser?
Se não é, é merda.
Se não é um ser,
não é.
Ora, ele não é,
a não ser como o vazio que avança com todas as formas
cuja representação mais perfeita
é a caminhada de um grupo incalculável de piolhos.

“Você é louco, senhor Artaud, e a missa?”
Nego o batismo e a missa.
Não existe ato humano
que, no plano erótico interno,
seja mais pernicioso do que a descida
do suposto Jesus Cristo
sobre o altar.

Não vão acreditar em mim
e vejo daqui o público levantando os ombros
mas o  chamado cristo não é mais do que aquele
que de frente para o piolho deus
aceitou viver sem corpo,
enquanto um exército de homens
descidos de uma cruz,
onde deus achava que estavam há muito tempo pregados,
se revoltaram,
e, armados com ferro,
com sangue,
com fogo, com ossos,
avançam, xingando o Invisível
a fim de acabar com o JULGAMENTO DE DEUS.



La recherche de la fécalité
In: ARTAUD, Antonin. Pour en finir avec le jugement de dieu. Paris: Gallimard, 2003.

Là ou ça sent la merde
ça sent l'être.
L'homme aurait très bien pu ne pas chier,
ne pas ouvrir la poche anale,
mais il a choisi de chier
comme il aurait choisi de vivre
au lieu de consentir à vivre mort.

C'est que pour ne pas faire caca,
il lui aurait fallu consentir
à ne pas être,
mais il n'a pas pu se résoudre à perdre
                      l'être,
c'est-à-dire à mourir vivant.

Il y a dans l'être
quelque chose de particulièrement tentant pour l'homme
et ce quelque chose est justement

LE CACA.
   (Ici rugissements.)

Pour exister il suffit de se laisser aller à être,
mais pour vivre,
il faut être quelqu'un,
pour être quelqu'un,
il faut avoir un os,
ne pas avoir peur de montrer l'os,
et de perdre la viande en passant.

L'homme a toujours mieux aimé la viande
que la terre des os.
C'est qu'il n'y avait que de la terre et du bois d'os,
et il lui a fallu gagner sa viande,
il n'y avait que du fer et du feu
et pas de merde,
et l'homme a eu peur de perdre la merde
ou plutôt il a désiré la merde
et, pour cela, sacrifié le sang.

Pour avoir de la merde,
c'est-à-dire de la viande,
là où il n'y avait que du sang
et de la ferraille d'ossements
et où il n'y avait pas à gagner d'être
mais où il n'y avait qu'à perdre la vie.

o reche modo
to edire
di za
tau dari
do padera coco

Là, l'homme s'est retiré et il a fui.

Alors les bêtes l'ont mangé.

Ce ne fut pas un viol,
il s'est prêté à l'obscène repas.

Il y a trouvé du goût,
il a appris lui-même
à faire la bête
et à manger le rat
délicatement.

Et d'où vient cette abjection de saleté ?

De ce que le monde n'est pas encore constitué,
ou de ce que l'homme n'a qu'une petite idée du monde
et qu'il veut éternellement la garder ?

Cela vient de ce que l'homme,
un beau jour,
a arrêté
l'idée du monde.

Deux routes s'offraient à lui :
celle de l'infini dehors,
celle de l'infini dedans.

Et il a choisi l'infime dedans.
Là où il n'y a qu'à presser
le rat,
la langue,
l'anus
ou le gland.

Et dieu, dieu lui-même a pressé le mouvement.

Dieu est-il un être ?
S'il en est un c'est de la merde.
S'il n'en est pas un
il n'est pas.
Or il n'est pas,
mais comme le vide qui avance avec toutes ses formes
dont la représentation la plus parfaite
est la marche incalculable d'un groupe de morpions.

"Vous êtes fou, monsieur Artaud, et la messe ?"

Je renie le baptême et la messe.
Il n'y a pas d'acte humain
qui, sur le plan érotique interne,
soit plus pernicieux que la descente du soi-disant Jésus-Christ
sur les autels.

On ne me croira pas
et je vois d'ici les haussements d'épaules du public
mais le nommé christ n'est autre que celui
qui en face du morpion dieu
a consenti à vivre sans corps,
lors qu'une armée d'hommes
descendue d'une croix,
où dieu croyait l'avoir depuis longtemps clouée,
s'est révoltée,
et, bardée de fer,
de sang,
de feu, et d'ossements,
avance, invectivant l'Invisible

afin d'y finir le JUGEMENT DE DIEU.