Sei que a postagem foge um pouco (talvez
muito) da proposta do blog, mas, em certa medida, vem a iluminar um pouco o que
se tem pensado e dito hoje sobre a literatura contemporânea, sem deixar de
fazer referência a uma referência incontornável francesa: Marcel Proust.
Além do mais, é uma coluna sobre o meu
recém-lançado livro Teu pai com uma pistola. E eu não poderia deixar de
colocar aqui este texto tão generoso:
O
desmaio de Proust
José Castello, no caderno Prosa&Verso
d’O Globo de 12 de janeiro de 2013
Surpreso, encontro em “Teu pai com uma
pistola” (Confraria do Vento), inspirada reunião de poemas de Thiago Mattos, um
poema – batizado apenas “2,1”, nomeado, como todos os outros, só com uma ordem
crescente de decimais – que concentra, em uma página e meia, grande parte dos
dilemas da literatura contemporânea. Por isso nele me detenho: porque, como um
brevíssimo raio em meio À noite escura, ele descerra uma breve, mas atordoante,
luz. Ela ilumina impasses que me atormentam e agitam, mas que quase nunca
consigo acessar.
O livro de Thiago, de fato, me
envolve. Oferece-me pistas em um caminho, na maior parte do tempo, desprovido
de pegadas. “Que bom que você ainda se surpreende com livros”, me diz uma amiga
querida. Seu comentário, sem que ela saiba disso, sintetiza o problema que
venho propor a meus leitores. Serei eu que, talvez em uma fase hipersensível,
ou em um “mau momento”, me deixo golpear pelo poema, sentindo um raspar
delicado como um soco? Ou, ao contrário, e de fato, é o poema (é o livro) que
me esmurra, sacudindo-me, arrancando-me de meu eixo, e me levando a uma espécie
de desmaio?
O poema em questão, “2,1”, trata
justamente da lenda que cerca um desmaio súbito de Marcel Proust quando, aos 31
anos de idade, visitando o Museu Mauritshuis, em Haia, ele se deparou com “A
vista de Delft”, uma das telas mais conhecidas do pintor barroco Johannes Vermeer.
O pintor holandês terminou de pintá-la no ano de 1660; Proust a viu, pela
primeira vez, no ano de 1902. A tela retrata a pequena cidade holandesa de
Delft, situado a meio caminho entre Haia e Roterdã, em que Vermeer nasceu e na
qual ele está enterrado. É uma visão magnífica das silhuetas em pedra da
pequena vila – fundada em 1062 e ponto de origem da atual Holanda. Sobre as
construções grandiosas e o canal que elas bordejam, nuvens cinzentas acentuam o
ar dramático. É, de fato, um quadro que nos atinge e desorganiza.
Pois foi diante dessa tela de
Vermeer que Marcel Proust, conta a lenda, teria subitamente desmaiado. É a
respeito desse desmaio, e das questões complexas que ele nos apresenta, que
Thiago Mattos escreve. O poeta se imagina em uma entrevista, na qual se refere
ao dia em que “Proust/desmaiou/vendo o quadro (um quadro de alguém)”. A
hipotética síncope deixa o poeta Thiago em uma encruzilhada. Escreve: “Ele era
doente”, eu diria/”ele era fisicamente doente,/desmaiou porque teve talvez/uma
emoção forte/e como era frágil...”
Nesta primeira hipótese, a força não
estaria na tela de Vermeer, mas na fraqueza emocional de Marcel Proust.
Hipersensível, desprotegido, com o coração sempre exposto, o autor de “Em busca
do tempo perdido não teria resistido à beleza” – sim, beleza indiscutível – de uma
tela que, contudo, talvez não fosse bela o suficiente para justificar o
desmaio. “Mas não desmaiou por causa do quadro/a arte ainda não tem/ou não tem
mais/o poder de/fazer as pessoas desmaiarem”. Atentem: “ainda não tem”. Gosto
disso, abre uma esperança.
Tem sim, Thiago. Não, não cheguei a
desmaiar lendo seu poema, não cheguei a tanto. Você não deve se preocupar
comigo. Amigos, muitas vezes, também me dizem que sou hipersensível, que me
impressiono exageradamente, que altero e amplio o poder das coisas. Talvez, não
estou certo. Mas admito: talvez. O fato, porém, é que não desmaiei e, no
entanto, seu poema, Thiago, me golpeou com a força de um boxeador. Ou, talvez,
como o tiro de uma arma, a mesma pistola que carrega o pai de seu livro.
Não é por acaso que penso no
boxeador: você pensou nele antes de mim. Você escreve: “pensei numa/máquina/que
era uma luva de boxe com um braço mecânico retraído que se expandia e dava um
soco/no espectador/quando ele chegava perto/e o espectador desmaiava”. Você sim,
Thiago, pensa na arte – ainda hoje, mesmo em nosso século apressado e incapaz
da contemplação – como um soco desferido por um boxeador. Mecânico, certo. Só
uma máquina – mas hoje tudo é máquina. Ainda assim, boxeador. Ainda assim: algo
que nos derruba.
O problema que seu belo poema expõe
é: será a arte, ainda hoje, se é que já foi algum dia, capaz de nos golpear e
arruinar? Será ela capaz de nos “possuir” – como um espírito que, uma vez
chamado, se incorpora em um médium e o inclina? Você, Thiago, termina seu poema
com uma ironia bem contemporânea: “...desmaiava/ou/se fosse inteligente/pelo
menos/fingia desmaiar”. Mas que uso louco da inteligência! Colocá-la a serviço
da mentira, de que isso realmente nos serve? No entanto, em nosso século das
grifes e das performances e dos desempenhos e dos índices... Bem: você sabe. E
nos diz isso.
É todo belo – delicado e sutil, mas
indiscutivelmente belo – o livro de Thiago Mattos. Transpassa-o, sempre, a
mesma pergunta: será a arte “só isso”, isto é, “emoção estética”? Ou ela será “mais
que isso”, quer dizer, será a arte (a poesia) algo que ainda hoje pode afetar,
desarticular e deslocar? Homens (o mundo hoje está cheio deles) se armam com
pistolas, não com quadro, não com poemas. Mas por que não armar-se com a
máquina que Thiago imaginou? Por que não “armar-se” – mas o verbo não é bem
esse, não pode ser esse – com o soco da poesia? Por que não se alimentar (esse
verbo é melhor) devorando (ou sendo devorado) por uma tela?
Arte (poesia) que é, sempre, enigma.
Uma estrela no outro extremo da galáxia: inalcançável. Como nos propõe Thiago
no poema “0,9”: “oh, o sol posto/olhe o sol posto/como está posto não dá para
vê-lo/por isso olhe o sol posto”. Eis a arte: ela nos propõe que vejamos o
invisível. Não vamos conseguir (desmaiamos antes, como Marcel Proust). Mas esse
desmaio – esse deslocamento, esse soco – é a visão que a arte nos oferece
Podemos observar os eclipses solares usando como anteparos folhas de raios X,
filtros especiais, películas de cinema. Para a poesia, contudo, não existe
proteção: ou você expõe a vista e aceita ser derrubado – ser “lido” pelo poema –
ou não chegará a ler um poema. Experimentem fazer isso com o livro de Thiago
Mattos. Experimentem enfrentá-lo. Pode até ser que não desmaiem, mas ficarão
surpresos.
José Castello,
no caderno Prosa&Verso d’O Globo de 12 de janeiro de 2013